sexta-feira, 29 de julho de 2011

Charamango

     O bom aqui da serra além do aprazível clima invernal é esse espírito de maternidade, é esse jeito comunitário de viver, esse sentimento de cordialidade, amabilidade, enfim, de solidariedade humana. E não foi sem esses sentimentos que passamos mais um final de semana aqui no gracioso recôncavo da Serra Furada.
      No sábado pela manhã já estávamos lá, fortes, bonitos, preparados – como de praxe – para enfrentar as mais difíceis e inusitadas situações que um ambiente isolado da urbanidade pode ofertar aos cavalheiros do urbano mundo. Todos já chegaram devidamente paramentados, o Júnior, mano velho, já chegou pisando de vulcabrás para mostrar que tinha incorporado o espírito local. O Eleotério apresentou-se meio malemolente, botina de motociclista toda em couro, impermeável e coisa e tal, pisando fino, sempre foi assim, numa dessas viajadas que costuma dar, esqueceu-se que não tinha moto e comprou a bota; hoje a utiliza para dirigir o seu carro e dirigir-se à serra. Eu me apresentei em calça de brim e all star, porque sou macho e não seria aquele ambientezinho meio inóspito que iria me tirar o espírito casual street que sempre adotei. O Artur chegou de abrigo de nylon e chinelinho rider (dando férias para os seus pés), e já foi logo sendo avisado pelo mano Júnior que estava frio, coisa que seu corpo de menino impúbere já tinha tomado conhecimento posto que apresentava uma cor meio puxada para o arroxeado.
      Todos paramentados a seu bel prazer e prudentemente embarracados (a casa ainda não apresentava condições dignas de moradia), fomos à gula. Um tira um saco de pão, outro começa a descarregar as cervejotas, um terceiro aparece com um garrafãozinho de vinho (que, segundo ele, esquenta a alma uma barbaridade) e o nosso querido Eleotério já se ventilou como sendo o nosso churrasqueiro oficial, o que foi parcialmente aceito, estávamos em quatro e eu fui voto vencido. Sendo assim, o churrasco já por conta do dito cujo, sentamos os demais em semi-círculo para facilitar o estiramento dos inebriantes fermentados.
      Quem conhece serra também deve conhecer o popular ventinho serrano, que por vezes pode atrapalhar algumas manobras inerentes a um bom churrasco, qual seja, a feitura do fogo. Mas, estávamos lá, bebendo e proseando e acreditando que o implacável churrasqueiro e sua caixa de fiatlux com cinqüenta palitos seriam mais que o suficiente para a produção de um foguinho que nos proporcionaria um digno jantar a base de carne e pão e vinho; triste engano... já tínhamos notado que por várias vezes Eleotério pronunciava alguma coisa e variava um palito ainda fumaçeando para o alto, mas, conhecendo-o como o conhecemos nem nos preocupamos, afinal, ele é um homem criado forte, serrano de Anitápolis, um caboclo. Até que, nos olhou com uma cara de insuficiência e disse num tom meio que desolado: pessoal, hei, olha, acabou o fósforo e essa porcaria de fogo não acendeu e não quero nem saber. Mas para quê dizer isso, foi só falar que o nosso Artur já apresentou nos lábios aquele típico sorrisinho que somente nos débeis faz florescer, sorriu e já foi desencaixotando cultura: Deixa comigo, vi no youtube dia desses um jeito de fazer fogo que é pá pum, tiro e queda... só preciso aí de dois gravetos e um pouco de palha seca. Tudo arranjado, palha sequinha, duas varas de madeira e lá foi ele fazer fogo e lá fomos nós ficar de fogo... volta e meia olhávamos para ver se estava tudo bem com o nosso recém descoberto Macgyver... passa-se tempo, passa-se muito vinho e algumas cervejas e um iluminado já prevê: nós vamos é ficar prontos antes do churrasco. O Artur, coitado, tão geladinho com aquela roupa, soprava, soprava e esfregava aquelas varetas e nem uma fumacinha de esperança saía do seu jeito youtube de fazer fogueira. Estávamos perdidos... perdidos, bêbados e com fome.
      Mas, lembram-se vocês o que falamos sobre a alma aqui da Serra Furada (ou temos algum leitor débil mental?), a cordialidade, a amabilidade e principalmente a solidariedade! Pois bem, lá estávamos nós, a noite já havia descido sobre o céu, o vinho já havia descido pela nossa garganta e o desânimo já começava a descer sobre nossas cabeças.
      Porém, assim, do nada meus amigos, a solidariedade serrana apiedou-se daqueles quatro corpos inertes e frágeis. Primeiro foi um barulho estranho que ouvimos, como se algum animal tivesse tombado no meio dos galhos secos que faziam a entrada do sítio, depois uma voz meio apipocada pôde ser ouvida, baixinha, baixinha mas resmungada, como se reclamasse de alguma coisa... depois avistamos uma mancha rosácea surgindo por detrás dos galhos. Ah, Deus, era o nosso bom amigo e vizinho Ambrósio que veio em nosso socorro depois de observar por toda tarde “vocês se matando pra faze um foguinho, há há” disse ele, não me agüentei e disse para a mulher: “Mulher, vai dormir que eu vou lá fazer um fogo para aqueles pongós”. Era sábado à noite, descabidou a roupa de domingo e veio... aproveitou a deixa da vinda e deu umas beiçadinhas no nosso vinho e na cerveja, depois, chamou a todos os quatro, e falando baixinho, disse: “com esse vento, nesse frio, eu até posso fazer fogo, mas vou ter que fazer na base do charamango”. Sem sabermos nada de charamangos e chamando barata de baconzitos nem ligamos, faz o fogo no chão pelo amor de Deus e vamos botar essa carne para assar. Ambrósio nos olhou, olhou para a sua casa de luz já apagada, disparou um sorriso que nos deixou um pouco apreensivos e disse: “vamos lá negada, me passa esse garrafão senão não vai rolar o charamango!” Fez alí um vinho em metro que deu gosto de ver, fácil fácil meteu para dentro uns bons dois litros de nosso demi-sec... pegou quatro gravetos, fincou cada um de maneira a formar um quadrado meio torto e disse para que cada um ficasse posicionado de frente a um dos gravetos, diligentes, lá fomos nós cada um para o seu graveto... Ambrósio também pediu que batêssemos os pés como em marcha rítmica... ainda deu o exemplo: tum, tum tum... tum, tum tum... e lá fomos nós, tum, tum tum, tum, tum tum... Ambrósio posicionou-se no meio do quadrado torto e começou a falar umas abobrinhas olhando para a terra e para o céu... meninos, esse homem começou a girar e falar mais e mais e a girar mais e mais rápido até que rapaz... deu um calhau de um estouro e uma labareda de fogo levantou-se que nós que estávamos no tum, tum tum ao lado dos gravetos acordamos segundos depois a uns três metros do fogo formado, e que fogo meus amiguinhos... forte, robusto, inapagável! Mas deu o quê? Uns dez segundos e de dentro daquele fogo infernal pula quêm? O Ambrósio meninos, vivinho vivinho... tá certo que apresentava-se um pouco diferente, estava só de sapato e de cinta, as únicas coisas não inflamáveis que vestia na hora do charamango... mas vivo... lá estava o verdadeiro nativo, o conhecedor da mãe natureza, mão na cabeça enfumaçada, desnudo, trajando apenas um par de sapatos e uma cinta de couro... por nós dedicou o seu tempo, por nós dedicou sua roupa de domingo, por nós dedicou o sono de sua mulher... agradecemos por tudo sem saber ao certo o que falar, como falar, o que dizer... Ambrósio somente sorriu e disse que não era nada, que Deus havia ensinado que devemos ajudar os mais necessitados, e se foi sem dizer mais nada... de sapato e cinta para a escuridão do recôncavo serrano... nos entreolhamos ainda assustados, como só fazem aqueles que presenciam algo sobrenatural... mas a fome era grande e logo parecíamos ter esquecido toda aquela epifania pagã e fomos preparar a carne para botar no fogo que ardia alto no meio da noite sem estrelas... o Júnior, mano velho, já sem pensar direito gritou: traz o vinho que eu preciso de um gole, e rápido! Procurei, tentei achar, mas sem sucesso. Olhamos por tudo, e nada. Olhamos por volta da velha casa, poderia ter sido lançado pela explosão a um dos cantos ou coisa do tipo... nada nada e nada... até que o nosso brioso Artur avistou uma espectral mancha branca indo-se pela estrada e levando consigo algo que nos pareceu ser um garrafão de vinho... era ele, o xamã, o rei do fogo, Ambrósio... caminhava como veio ao mundo, mas de cinta e sapatos de couro, consagrando o nosso demi-sec a cada gole que ia dando pela estrada... de longe ainda o abençoamos, como de longe, abençoamos a todos vocês... 

Um comentário:

  1. Eu desconfio que foi nesse mesmo dia que tentamos nos comunicar com vocês pelo celular... agora tudo está claro, digo, tim, digo, agora entendi tudo!

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